Em uma inspeção aleatória, saímos com a impressão de que as nossas vidas foram vasculhadas. E a literatura talvez seja isso também: um raio-x do que carregamos escondido. Um detector de mentiras que nunca apita, mas acusa. As histórias que escrevemos são bagagens que, mesmo quando despachadas, continuam nos assombrando. Algo que não pode ser declarado.
A inspeção aleatória é o que separa o que fingimos ser daquilo que realmente está lá, embarcando: medos, vícios, personagens inventados, pequenas ficções íntimas que sustentam a rotina. Escrever, então, é aceitar ser parado na alfândega. Ser o culpado e topar o risco de que o inspetor-leitor encontre o que nem o autor sabia existir.
Somos todos culpados, nunca inocentes. Sorte que a literatura é maior que a vida, pois nela cabem múltiplas vidas. E culpas. A possibilidade de o autor misturar as suas experiências com a dos outros (“eu é um outro”, já diria Rimbaud no alto da sua adolescência-aposentadoria) é uma das principais chaves do ofício literário. O um na escritura é múltiplo e a representação será impossível. Nesse sentido, o leitor que se identifica com um personagem, se identifica com uma farsa. A literatura é um jogo de espelhos: utiliza dessa farsa para criar sentidos abstratos e uma infinidade de becos sem saída.
Essa ideia me conduz à leitura do Kafka. Ele relacionou através de labirintos desviantes (literatura), o que viveu com o que escreveu. Encaixou fragmentos da realidade em seus textos de forma cifrada. Como se identificar com um truque de mágica? O que ele vivenciou ou não vivenciou? Não importa. Nunca importou. O inseto monstruoso somos nós.
Mostrar o que já existe não interessa. Saber se existiu ou não existiu, tanto faz. “(...) A arte é um meio de sentir o devir do objeto, aquilo que já se “tornou” não interessa à arte”, diria o conceito de ostranenie (estranhamento) do Viktor Chklovski. Logo, o escritor precisa deixar um espaço em branco no seu texto. Elipses eloquentes. O que está dentro, entranhas ou fantasmas, é o que importa. O invisível é a essência da escritura. Lidar com esse invisível e arremessá-lo na cara do leitor é um ato de coragem. E é neste ato que reside o nosso ofício.
São obras assim – corajosas na forma e no conteúdo, ambíguas e não tementes ao julgamento alheio – que eletrizam um possível leitor. Fazem com que ele se torne, nas palavras do Ricardo Piglia, um “leitor criminoso”. O leitor que usa os textos lidos em beneficio próprio, de forma desviada. Um “hermeneuta selvagem” que toma a obra para si e a interpreta do jeito que quiser. Em um bom livro nunca haverá a leitura correta, única, perfeita. Só restará a leitura desfigurada: é ler a Bíblia como um romance de ficção científica. “O livro como um objeto transacional, uma superfície onde se espalha as interpretações.”
Não há escapatória: escrever é montar a cena do crime. Ler é aceitar ser o criminoso.
Diégane Latyr Faye, o jovem escritor pueril & febril criado por Mohamed Mbougar Sarr em “A Mais Recôndita Memória dos Homens”, disse: “Escreverei como alguém trai seu país, isto é, como alguém escolhe como território não o país natal, mas o país fatal (…) a pátria dos medos e das vergonhas que destilam pelos flancos da alma…”
A nossa primeira frase no papel é o aceite dessa traição. Pois é, trairemos alguém ao escrever, impossível escapar dessa sombra. Nem que esse alguém seja nós mesmos.
A literatura, como as inspeções e as viagens, é um acidente à espreita. Por isso, não é exagero dizer que escrever é acionar uma sirene imaginária, convocando o leitor (esse cúmplice-culposo, como disse acima) para uma revista não prevista, que reabre malas já fechadas, investiga traços de outras vozes, fareja sentidos escondidos entre as roupas sujas da linguagem.
É no extravio da bagagem que descobrimos do que realmente sentimos falta.
É no que não foi dito, mas pesou, que se escreve o que realmente importa.
Mas sim, claro que sim: há beleza nesse acaso, nessa traição, nesse crime, nesse excesso. Afinal, um acidente pode ser uma epifania. Uma queda pode ser um levante. Um golpe pode ser uma chance de revide.
Um desastre, um reencontro com o próprio abalo.
Eu estava precisando ler este texto e não sabia 🙂
Rapaz, você devia publicar mais aqui!